RUÍNAS - Estreia

Porto
01.06.2005 - 12.06.2005

1. teimosia
2. ruínas
3. palavras com rabinhos
4. a peça
5. obrigação
6. mais nada



Estamos a andar para trás a ver se conseguimos fazer com que nada se modifique. Nunca percebi muito bem porquê mas sempre fui do contra. Dá-me coisas, não sei. Um prazer que se confunde com caminhar de gatas debaixo das mesas e beijar as pernas das mulheres. Se o mundo é feito de mudança, eu quero fazer um espectáculo sobre as coisas que nunca mudam. Há coisas que nunca mudam: as pernas que se abrem e fecham quando caminhamos, eh eh eh, o fim, e as ruínas. Por isso estamos a fazer um espectáculo que é sobre as ruínas.
Em Ruínas sobrevoamos uma zona que vai desde a delimitação de fronteiras comuns de territórios distintos até à criação de uma novela da vida irreal que pretende inocular-se por entre os poros, veneno por debaixo da pele, trespassando os músculos e abrindo as veias até se alojar como lascas de metal, parafusos nos ossos desarticulados. Nada de muito significativo portanto, apenas mais uma mão cheia de lugares-comuns. Não desejamos impressionar, nem expressar, nem ocultar, nem descobrir. Só desejamos fazer.

Estão a perceber? Deixem lá que eu também não. Apostamos numa acção que metaforiza a compressão de tempos diversos de uma vida. Um momento qualquer que é como se fosse para sempre. O copo de água que estou a beber neste momento contém um gesto que foi já feito e que voltará a ser feito outra vez com o mesmo efeito e com as mesmas intenções. Então o que é que muda? O copo? A água? O corpo? Nós?


O texto teve como ponto de partida a ideia de um grupo de pessoas que se encontra perante uma porta e que não a consegue transpor. A vida deles fica assim dependente de a porta se abrir por uma qualquer razão exterior à sua vontade ou de se manter assim fechada para sempre. A impossibilidade de consumar este gesto, o simples abrir de uma porta, condensa neles o tempo todo das suas vidas. O que se obtém é a descrição dos dramas íntimos de quatro personagens estranhamente ligadas pela morte de uma criança.
Os modos como cada uma vive esse momento define-as e define as suas vidas em comum. A vida não se altera, nós é que a olhamos de uma posição diferente. No texto está inscrito o que se diz e o que se pensa em simultâneo, sendo por vezes difícil, ou mesmo impossível, separar as duas falas. Pelo meio, estabelece-se uma consciência que se encolhe e que se alarga conforme os modos de vida que cada um decidiu para si. As palavras escondem-se dentro dos corpos como vermes com rabinhos a dar a dar.
Porém, entre o texto e a peça existe um hiato. Um salto para um território em que os companheiros de jornada se multiplicam à velocidade dos dias que passam e das cumplicidades que o acaso estabelece. O texto chama-se A Caminho do Fim e a peça dá pelo nome de Ruínas. Uma relação curiosa que se estabelece entre caminhos e ruínas, entre corpos com vidas que se desfazem no caminho e as roupas que se usam para dar cor aos corpos. Saltos altos para tocar o céu e fazer buracos no chão para falar com os mortos e nos confessarmos dos pecados que ainda queremos fazer. Uma das personagens da peça diz o seguinte acerca da morte: “…quantas pessoas terei que matar até ser respeitada, até ser ouvida?! Eu já vos disse para fecharem a merda da boca. É por lá que entram os vírus… queria dizer da porta… da porta”. Na peça, as personagens falam com eles com os outros e com os mortos delas e dos outros. Talvez por isso a peça seja ao mesmo tempo didáctica e religiosa. Contínua e comprimida. Nem que seja por força das pedras que caem e que lhes esmagam as caveiras, perdão, queria dizer o crânio.
Escrevo porque me obrigam a fazê-lo, respiro porque o meu corpo o faz sem me perguntar nada, caminho porque me empurram, amo porque o meu corpo se estende, deliro porque não me aguento em pé, sofro porque sou um anão ao ombro de um gigante, entrego-me porque me falham as pernas para correr, escondo-me mas descobrem-me porque cheiro muito mal, tenho sede porque verto águas pelas juntas dilatadas, encolho-me para partir a espinha, não sei nada acerca das diferenças culturais, faço um testamento porque tenho inimigos, saboreio o sangue porque me partiram os dentes, caio porque me empurram, reproduzo-me porque sou vaidoso e porque há momentos estranhos em que nos empurram e em que somos obrigados a pensar, obrigados a andar, obrigados a levantar voo. A caminho do fim, noite escura, ou ruínas?


JOÃO GARCIA MIGUEL
Porto/Lisboa
2005-04-11




Encenação: JOÃO GARCIA MIGUEL
Texto: JOÃO GARCIA MIGUEL E LUIS VIEIRA
Cenografia e figurinos ANA LUENA
música original ALEXANDRE SOARES
Desenho de luz MÁRIO BESSA
Elenco MÁRIO SANTOS, PEDRO MENDONÇA, LUCIANO AMARELO, ISABEL QUEIRÓS, MARTA GORGULHO
Co-produção TEATRO BRUTO/TNSJ