ODE MARÍTIMA - Estreia

Casa d'Os Dias da Água, Lisboa
20/01/2007 - 30/02/2007


Ode Marítima de Álvaro de Campos,
interpretado por João Garcia Miguel.

Encenação de Alberto Lopes




Ode Marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É - sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...


Cartaz do Expresso,
3 de Fevereiro de 2007
Depois de um clássico outro clássico, embora já não teatral.Rei Lear, de William Shakespeare, foi o último texto que João Garcia Miguel trabalhou, mastigando-o como um hambúrguer e voltando a oferecê-lo sob o título Burgher King Lear.


-lo com Miguel Borges e Anton Skrzypiciel.Sem personagens e acção, João Garcia Miguel sobe agora ao palco com as palavras de Álvaro de Campos, sob direcção dramaturgia e som de Alberto Lopes, em Ode Marítima.


Uma leitura "que progride até que o texto se revela como entidade coisa independente e segura".





QUARTA-CRESCENTE
2007-02-21
Risoleta Pinto Pedro

“A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar”
Álvaro de Campos
Um cais sobre um palco. Nevoeiro. E a voz, a inesperada voz. Ainda a ouço. Foi, não sei há quantos dias, foi, seguramente há umas semanas. Mas ainda a ouço, ainda lhe sinto as inflexões. Às vezes dou comigo a “inflexionar” como A VOZ. Com a voz? Ou a reconhecer pequenas inflexões suas em intervalos musicais de outras vozes. Como descrevê-la? A voz é de um actor? Ou de Álvaro de Campos? Ou de um marinheiro, deus marinho ou estivador? Comandante de um navio? Ou Fernando Pessoa? O programa refere um nome: João Garcia Miguel, actor, o intérprete da “Ode Marítima” na Casa dos Dias da Água. Foi lá que ouvi a VOZ. Já acabou, fui ver o penúltimo espectáculo porque me convidaram, e para poder aconselhar os meus alunos. Porque isto de se aconselhar teatro aos alunos sem ver antes, é um enorme risco. Risco para o teatro, risco para um caso de amor ao teatro em que pode tornar-se uma ida ao teatro se o (a)caso for feliz. Tenho alunos que depois de terem visto algumas peças ficaram para sempre rendidos; vão ver seja o que for que eu lhes proponha, se for teatro.

Daí a grande responsabilidade. Porque também pode acontecer o contrário. Por isso, fui ver. Conheço o texto, conheço o contexto. Não sabia da voz. Foi a primeira surpresa. Ainda não se via o actor, já se ouvia a voz, e eu pensei: “Como é que é possível que eu nunca tenha ouvido esta voz?!”; porque a reconhecia; não de a ter ouvido, mas de a ter “reconhecido”. Poderão perguntar-me agora: “Mas é possível reconhecer uma voz que nunca se ouviu?”.

Respondo-vos eu que sim. É possível reconhecer uma voz que nunca se ouviu. “Como?”. “Não sei.” Poderia convidar-vos a imaginarem um monólogo de uma hora e meia: a “Ode Marítima” do engenheiro Álvaro de Campos ao vivo e no nevoeiro; por isso, poucas cores. Movimentação sóbria, adequadamente espástica num ou noutro momento, expressão q.b., nunca de menos, nunca demais excepto quando o texto não permite que seja de outra maneira.

E a voz. Sozinha, “no cais deserto”, olha “prò Indefinido”, que somos nós, e diz-nos o que vê: “um paquete entrando”, e descreve-se, sem se descrever: “Mas a minh'alma está com o que vejo menos.”. É a voz que o “trai”: ora cheia de “silêncios rumorosos”, ora “desabrochando… num ruído” paradoxalmente “cor de silêncios” … “Soa no acaso do rio” e através desta voz “Chamam por mim os mares.” É um chamamento, “esse grito tremendo de um contador de histórias marítimas que parece soar de dentro duma caverna cuja abóbada é o céu”. Recordas-te, Voz?: “ (Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas, E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca, Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras: Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-yyyy... Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyyy...)” Já passaram alguns dias, mas ainda hoje “Escuto-te de aqui, agora” e desperta, ainda que alguns sons me cheguem como eco de “um ruído cego de arruaça”, ou de “volante a girar no centro do peito”, como um “clamoroso chamamento”, falando, chorando, gritando, interrogando, evocando, cantando, repetindo, silenciando.
Terminada a representação, apenas me restava “partir como voz”… “No silêncio comovido da minh'alma...” Afasto-me a cantar como um mar ao longe, mas “a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim...”, a canção é este misterioso magma alquímico criado por um texto, um corpo, um ambiente e uma voz. Se a tivesse ouvido, o engenheiro Álvaro de Campos teria composto uma ode qualquer, talvez uma Ode à Voz, quem sabe?, de pé e num jacto, como costumava escrever.

risoletapedro@netcabo.pt
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