AS MINORIAS ESTUPIDAMENTE FELIZES
05.11.2005
Nos finais do século XIX e princípio do século XX, o entusiasmo e a capacidade de se inflamar das pessoas residia ainda em muitas formas de arte. Não só apenas nas artes performativas mas também em outras esferas da arte vivia-se então um período em que se desejava e se pensava ser possível mudar o mundo. A capacidade que as artes demonstravam então de provocar inflamações e mudanças nos hábitos e comportamentos sociais era um dos sonhos que movia os artistas daquela época. De um certo modo, ainda que diferente, esse sonho, esse desejo perpassa nas ambições de muitos dos artistas contemporâneos. Mas o que sucede então que estamos incapazes de mudar este mundo, no todo ou em partes, de o modificar criando outros mundos que permitam a deslocação da nossa inércia natural?
É interessante recordar, por exemplo, uma das produções de Meyerhold nos inícios dos anos 20 do século XX, na altura do entusiasmo utópico decorrente da Revolução Russa, seguindo uma descrição de Edward Braun : a primeira performance coincide com o 3º aniversário da Revolução de Outubro, e teve lugar no dia 7 de Novembro de 1920 no antigo Teatro Sohn em Moscovo. Era na altura um auditório abandonado, sem aquecimento, com anúncios caídos por terra e assentos partidos e, parecia-se mais com um lugar de encontro clandestino. Na verdade este ambiente, estas suas características, tornavam-no no local apropriado, pois era isso mesmo que estava no espírito de Meyerhold, que tinha concebido esta sua produção como um encontro político, como uma reunião geral ou mesmo um comício. As entradas eram livres e nas paredes estavam pendurados cartazes de encorajamento, sendo ainda lançados sobre a audiência durante o intervalo um banho de panfletos políticos. (…) Na altura os críticos compararam a produção a uma tragédia Grega, o que, como o proprio Meyerhold afirmou na altura, forneceu as bases e fontes para o Chorus estabelecido no fosso da orquestra que comentavam a peripateia do drama (a súbita e inesperada mudança de acontecimentos do desenvolvimento dramático). O coro era assistido na tarefa de guiar e de estimular a audiência por um grupo de actores que estavam disseminados no meio do público. Em determinado momento a personagem do Mensageiro deveria entrar e trazer um boletim com o progresso real da Guerra Civil que ainda se estava a desenrolar nesse momento no Sul do País. A maior aspiração de Meyerhold, que era ter uma notícia formal do fim da guerra e da vitória do exército russo durante as apresentações da peça comício, foram recompensadas na noite em que o Mensageiro anunciou o golpe definitivo que prenunciava o fim da guerra, anunciando o desfecho da Batalha de Perekop e o teatro inteiro explodiu num hino triunfal cantando a “Internationale." (in Meyerhold 1969:163).
Nos nossos dias, dificilmente podemos imaginar tamanha demonstração de fervor sem suspeitar de uma manipulação total ou numa situação de má fé. O mais próximo que ficamos de uma situação assim será em acontecimentos desportivos, ou musicais, nas sessões da Igreja Maná ou agora em manifestações de descontentamento popular, em que o carácter regional está envolvido. Mas mesmo assim é muito difícil encontrar causas ou temas que sejam suportados e apoiados por toda a gente e que possam despoletar ondas de entusiasmo que movimentem e alterem os laços sociais. Mesmo a guerra, que foi um tema, em tempos unificador de nações e povos, hoje em dia fornece mais uma barreira que separa e divide as opiniões. A sua “utilização regular� em termos mediáticos de modos extremos e constantemente diversificados, impõe mesmo, reacções contrárias, fragmentando a possibilidade de renovação e de deslocamentos das estruturas sociais. Esta disrupção e fragmentação da esfera pública é endémica; é ainda mais severa e extrema no campo da arte experimental pois apesar de em termos culturais assistirmos a um consumo de produtos derivados do trabalho continuado de artistas, cria-se a ilusão de que tudo vai bem no reino das artes, e que a relação entre arte e sociedade é e está saudável. Ou pior ainda, que por vezes nem sequer é desejável ou necessária, para a nossa sobrevivência enquanto seres humanos. Não se compreende é que sem a existência das obras de arte, é muito provável que as formas de dizer amor se limitem a umas cópias incessantes das que já existem e que se começarão a assemelhar com os relatórios da bolsa, com a linguagem de algum apresentador de televisão ou com a beleza de umas quaisquer canções pimba. Afinal, tem sido aos artistas que nós temos ido desde sempre buscar formas de melhor expressar o que sentimos.
Mas o que sucede no campo da realidade, é o isolamento cada vez mais profundo entre as vanguardas teatrais e as artes performativas. Entre as artes em geral e os seus fruidores. As artes endereçam-se cada vez mais a pequenos grupos de espectadores e, nas artes performativas os fios que unem espectadores e criadores são cada vez mais frágeis e mais reduzidos. Pode-se talvez mesmo afirmar, que o mesmo se passa, entre a arte em geral e os seus públicos e, declarar com algum cinismo defensivo à mistura, que terá sido sempre assim, e até pior, em certos períodos da história. Mas essa é uma consolação fraca e pouco digna de um projecto de construção do ser humano e de edificação de mais humanidade nas sociedades contemporâneas. Numa época onde se fala constantemente de planeamento, falta “planear� que tipo de homem se pretende construir. Para além da ironia, e dos perigos que daí possam advir, não se pode planear nada, sem se saber o que se pretende obter no final. Mesmo, que isso seja uma imagem imprecisa e suficientemente obscura, deve estar rodeada de alguma luz, para que nos possamos para ela dirigir. Deve ser partilhada e conhecida por todos, para se poder aferir e corrigir constantemente os desvios sempre iniciados.
As artes performativas estão a ser crescentemente abandonadas, apesar de se assistir a um crescimento do número de intervenientes e de interessados nestas áreas. A performance ao vivo está encurralada entre duas frentes: por um lado os meios de comunicação, por outro a Internet com a sua extrema individualidade. Por um lado a tradição e os seus mortos e, por outro a tecnologia e a preservação artificial de estados de fraqueza e de medo para a eternidade. Os meios de comunicação são pertença de uns quantos e os seus conteúdos delimitados por corporações com interesses financeiros muito esclarecidos e/ou de representações das efabulações e formulações governamentais. A Internet é aberta à expressão individual, mas revolve tantas linhas de orientação que consensos fortes ou uma delimitação da esfera do público não é possível. Estas considerações levam-me a experimentar antecipadamente à minha volta e a poder afirmá-lo aqui uma descrença profunda sobre aquilo que pode vir a ser atingido e sensibilizado através da Internet e dos meios de comunicação de massas. É nas franjas do sentimento que se constrói a renovação, e tanto os meios de comunicação e a Internet, afastam as maquinarias do sentir e do sentimento. Certamente que todas as pessoas podem exprimir-se e exprimir tudo o que desejam sobre qualquer assunto e em qualquer momento, mas esta expressão não está ligada com a acção. Nas chamadas sociedades abertas, é permitido dizer e exibir tudo o que se quiser, mas isto tem tido um efeito de diminuição das suas consequências para lá dos prazeres da expressão própria e individual. Ironicamente, quanto mais abertos se têm vindo a tornar os meios de expressão na sociedade actual, mais supérfluos tanto a abertura como a expressão se têm vindo a tornar. Estamos numa situação deplorável em que se pode dizer e mostrar tudo mas que não se pode nem se consegue modificar nada. A frustração e o medo são os nossos maiores aliados e companheiros de estrada. Os poderes para governar e mudar as sociedades estão fora das mãos e do controle das pessoas, muito longe dos caminhos que o homem percorre no seu dia a dia.Assim organizar um Festival de artes performativas tem sido um desafio para mim, um campo onde me obrigo e me permito a estar com os outros e a pensar sobre o mundo que nos rodeia. A nossa capacidade de criar mundos que combatam a frieza e o desinteresse deste mundo real onde todos somos obrigados a viver, tem-se tornado uma tarefa de cada vez maiores desafios. Como afirma Appia no prólogo do seu livro A Obra de Arte Viva é preciso partir, atraídos por um desconhecido que achamos maravilhoso, mudar de direcção e abandonar o conhecido, que se ama, por um desconhecido que não se pode amar ainda, isto é cumprir um acto de fé. Fazer um evento como o Festival X é sem dúvida um acto de fé; não apenas meu mas de todos os que me têm ajudado ao longo dos anos a realizá-lo e de todos os artistas que têm colaborado e participado connosco.
Antecipando e apresentando a programação do Festival na sua edição de 2005, cumpre-me dizer que as escolhas feitas oscilam entre cumplicidades no olhar sobre o mundo que nos rodeia, a tomada de riscos com a apresentação de propostas novas e desconhecidas do publico português, com o convite a dois grupos de criadores internacionais, um espectáculo de um criador que se pretende filósofo e se predispõe a refundar algumas das fronteiras do seu universo pessoal e teatral; uma co-produção que assenta num projecto de investigação mais vasto do que apenas o espectáculo agora apresentado, e o assédio a zonas do espírito criativo que permeabilizam a teatralidade, como sejam, o vídeo, cinema e o vídeo-arte. As fantasmagorias de um Festival como este, permite-nos avançar para algumas acções de formação e sucedâneos informais de oposição e resistência criativa, ou mais simplesmente encontros. Permiti-nos ainda encetar uma colaboração com um espaço de formação académica, a ESAD das Caldas da Rainha, onde acreditamos ser possível e desejável encetar modelos de apresentação radicais, de qualificação e aproveitamento mais aprofundado, dada a predisposição das camadas de público potenciais.
Assim, o Festival X traz-nos este ano, o Miguel Moreira na rua, com os seus sonhos de solidariedade e intervenção social apresentados em espaços urbanos especiais, onde o teatro das ilusões e o teatro das vidas se podem confundir e reconquistar, tentando mais uma vez fracturar os limites do espectáculo e recuperar o que a ilusão tem de mais essencial; o Paulo Castro traz-nos uma das suas aventuras teatrais realizada no estrangeiro, que o têm tornado e ao seu trabalho cada vez mais reconhecidos, juntamente com alguns dos seus cúmplices mais próximos; um grupo inglês, que já no ano anterior nos apresentou um outro trabalho, que exploram e promovem a irrisão dos modelos dramatúrgicos vigentes; um trabalho de pesquisa e confronto entre a dança e a poesia oral, conjugando dois criadores oriundos de dois universos paralelos, tanto conceptual como geograficamente; um projecto de escrita de uma peça teatral apoiada num trabalho de investigação sobre o universo de Strindberg a ser apresentada em Sintra, em co-produção com a Companhia Chão de Oliva; um encontro de combate com vídeos, que se tem vindo a tornar um objecto circunstancial de trabalho para muitos dos criadores performativos, ultrapassando o mero instrumento de investigação; uma comédia épica de um criador com uma profunda originalidade que temos vindo a apoiar regularmente; e uma interrogação provocadora e transdisciplinar sobre as tecnologias do sentimento; apresentando ainda duas acções de formação e uma conferência debate.
Continuamos assim a lutar por um espaço na esfera pública. As artes performativas de vanguarda, como sejam o teatro experimental, a dança, a música e a performance, estão dependentes de financiamento exteriores, sejam eles estatais ou privados, e são apresentadas em espaços que comportam poucas dezenas de lugares. No entanto, está-se a criar uma rede de influências e de trocas de saberes, pontos de cruzamento, onde a proximidade conta e as relações entre os participantes presentes, é um dos objectivos co-laterais dominante. A vanguarda experimentalista das artes performativas está a regressar nos dias de hoje a um funcionamento de tipo medieval monástico, preservando e renovando, para os que lhes prestam atenção, um conjunto de valores e de actividades, que estão relacionadas com a criatividade individual, a responsabilidade social e as questões da reciprocidade. Isto pode por vezes ser entendido, como uma manifestamente declaração fervorosa e quase fanática de ideais, e da procura de soluções para a criação de outros mundos. Como dizia uma amiga minha, os artistas contemporâneos nas áreas performativas e transversais da criação vivem em cima de um enorme paradoxo. É-lhes permitido viajar entre vários países e lugares distantes, para realizarem os seus trabalhos, por vezes alojarem-se em hotéis extravagantemente dispendiosos, fazendo parte de um sistema financeiro absurdo e de uma elite social na qual são elementos estranhos e por vezes dissonantes, mas quando saiem para a rua, não têm dinheiro, nem para comprar cigarros ou para beber um café. Muitos destes artistas ligados às áreas performativas, sentem em si esta contradição e transformam as suas actividades em arma de arremesso contra as instituições e os media. Mesmo que essas armas sejam tão arcaicas e desajustadas como atirar pedras contra um carro blindado, cuspir num polícia vestido de Robocop ou partir vidros de carros ou de montras com flores de pedra. Muitos outros artistas nunca experimentaram a performance ao vivo, preferindo a Internet, o vídeo ou o cinema. Mas para todos nós que escolhemos essas formas de expressão arcaica, como na realidade lhe podemos chamar, e que se encontram em zonas nebulosas do espírito criativo, nas quais os seus dotes são dificilmente transformáveis em capital, estas contradições funcionam como motivações e uma espécie de recompensa. Apesar de sermos uma espécie de minoria feliz ou de minoria pateticamente feliz, e de não estarmos seguros quanto ao futuro da felicidade, estamos a mudar de direcção e a despojarmo-nos progressivamente de tudo e a vestirmo-nos de acasos.
João Garcia Miguel
Novembro 2005
Direcção Artística: João Garcia Miguel
Coordenação e equipa técnica: Iluson
Produção: Marta Vieira
Assistente de Produção: Maria Vasconcelos
Design gráfico e imagem: Paulo Pires
Comissário para o Videopulsiones: Joaquin Barriendos
Colaborador: João Abel Baptista